“O mar faz parte da vida e da sensibilidade dos portugueses”
História de Portugal-Direcção José Matoso
Cidadãos e cidadãs de nacionalidade portuguesa residentes em diversas regiões da parte continental portuguesa, nos Açores e na Madeira, decidiram iniciar a recolha de 75.000 assinaturas ao abrigo da lei 15A-98 de 3 de Abril com o objectivo de levar a Assembleia da República a promover a realização dum referendo no sentido de que o povo português se pronuncie sobre a sequinte questão: “concorda que Portugal deixe de ter direitos de soberania para fins de exploração e aproveitamento conservação e gestão dos recursos biológicos do mar passando a competência da gestão de tais recursos para a União Europeia?”
Ao iniciar a presente petição os cidadãos(as) promotores(as) consideram que para além do debate sobre quem - a UE ou o Estado Português - deve gerir os recursos biológicos que se situam adentro da ZEE nacional, é fundamental promover na sociedade portuguesa a discussão sobre a relação do nosso país com o mar e sobre a melhor forma de gerir recursos oceanicos que, para além de constituirem património do povo português, constituem património comum da humanidade.
1-Sobre o dever de conservar património da humanidade e o direito ao usufruto das riquezas dos mares
Compete a Portugal enquanto estado costeiro proteger as àguas oceanicas que banham a costa continental portuguesa, os Açores e a Madeira, de acordo com o estabelecido na Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar: “ o Estado costeiro assegurará por meio de medidas apropriadas de conservação e gestão que a preservação dos recursos da sua zona económica exclusiva não sejam ameaçadas por um excesso de captura”. (Artº 61-2 da Convenção das Nações Unidas)
Para além de constituír um dever do Estado Português perante a comunidade internacional promover a gestão sustentável dos nossos mares, o direito marítimo internacional reconhece aos Estados costeiros e às populações ribeirinhas altamente dependentes dos recursos marítimos, como primeiros beneficiários das riquezas contidas nos oceanos. Tal encontra-se consagrado na Constituição Portuguesa e na lei que rectifica a Convenção das Nações Unidas: “Portugal goza de direitos soberanos e de jurisdição sobre uma ZEE de 200 milhas maritimas” e, “O estado não aliena qualquer parte do território português ou dos direitos de soberania que sobre ele exerce, sem prejuízo da rectificação de fronteiras” .“A lei define a extensão e o limite das àguas teritoriais, a zona económica exclusiva e os direitos de Portugal aos fundos marinhos contiguos”
2-O Mar: factor determinante no nascimento e afirmação de uma nacionalidade
...” basta lançar os olhos sobre a carta de Portugal para nos convencermos de que o maior número de centros urbanos procedem directa ou indirectamente da actividade marítima. O grande sopro de vida ou de renovação veio-lhes do mar!”
Jaime Cortesão. Os Factores Democráticos na Formação de Portugal
A extracção do sal, a pesca, o comércio fluvial e maritimo de curta e longa distância e as actividades associadas ao mar como a construção e reparação naval (actividade promotora da florestação do país e do desenvolvimento da indústria de madeiras), tiveram papel determinante na construção da nacionalidade, conforme referem José Matoso e Armindo de Sousa “O mar, enquanto espaço de recurso para a subsistência diária foi experiência continuada das populações ribeirinhas. É tema assiduo na arte, na pintura, na escultura e na literatura. O mar faz parte da vida e da sensibilidade dos portugueses”.
Jaime Cortesão afirma que “agrícola foi o país durante mais de dez séculos da sua proto-histórica mas o que distingue nos primeiros séculos da sua existência do que fora em épocas anteriores, é a nova modalidade de povoamento e a importância capital que as formas de navegação assumem no conjunto das actividades nacionais. A actividade marítima está não só nas raizes da nacionalidade, donde sobe como a seiva para o tronco, mas é como a linha medular que dá vigôr e unidade a toda a sua história (...).
E basta lançar os olhos sobre a carta de Portugal para nos convencermos de que o maior número de centros urbanos procedem directa ou indirectamente da actividade marítima. O grande sopro de vida ou de renovação veio-lhes do mar”.
3-O oceano: “o maior e mais douradoiro activo estratégico do país” precisa ser gerido com consciência dos seus limites.
A importância do mar não é apenas passado valorizado pelos historiadores. É presente e está devidamente ilustrado pelas opiniões de alguns dos membros da Comissão dos Oceanos:
“Portugal tem uma área marítima que é 18 vezes a sua área terrestre, uma situação única entre os paises industrializados do norte. A nossa ZEE é mais de metade de toda a UE. Ou seja, se não temos grandes recursos naturais em terra, podemos ir buscá-los ao mar.” “Se exceptuamos as zonas marítimas decorrentes de territórios fora do continente Europeu (França e Reino Unido), Portugal é o país da UE com maior àrea de jurisdição marítima, em que aproximadamente 80% dos seus 1,6 milhões de Km resultam dos arquipélagos dos Açores e da Madeira.”
“O oceano é, sem dúvida a marca de Portugal. Marca essa que ressalta mais ainda no contexto Europeu. É o maior e mais duradouro activo estratégico do país. Activo geográfico, económico, sócio cultural e ambiental. Enquanto marca de diferenciação torna-se quase impossível não fundar nele uma visão estratégica fora Portugal”.
Concordantes sobre a grande dimensão e a potencial riqueza global retratada pelos membros da Comissão dos Oceanos, não podemos deixar de considerar, nomeadamente do ponto de vista biológico, e no que diz respeito aos recursos pesqueiros, as fragilidades da ZEE nacional referida por reputados investigadores “na circunstância de termos uma plataforma continental relativamente reduzida e de estarmos inseridos numa área do Atlântico de riqueza média e em boa parte circunscrita ao Continente.”
A plataforma continental estende-se até uma profundidade de cerca 130/200m, onde se exerce a maior parte da actividade da pesca, por apresentar as àguas mais ricas em nutrientes (...) e consequentemente, em espécies de interesse económico”.
A ZEE nacional é essencialmente constituída por grandes profundidades, zonas sensíveis do ponto de vista ecológico. A frente atlântica continental portuguesa dispõe duma reduzida faixa de profundidades inferiores a 200 mts.
Nos Açores na ausência de plataforma continental o esforço de pesca está a exercer-se em pequenos bancos e montes submarinos a profundidade de 600 m e esta profundidade corresponde a apenas 0,8 por cento da ZEE.
Na Madeira, devido ao reduzido número de bancos e montes submarinos, o essencial do esforço de pesca de fundo dirige-se a uma única espécie (peixe espada preto) capturado a profundidades de cerca de 1000 m.
Esta fragilidade biológica tem de ser tida em devida conta pelo Estado Português e é contrária à perspectiva liberalizante contida na proposta de transferência da gestão dos recursos biológicos do mar para a União Europeia.
4-Portugal, grande consumidor de pescado, aproveita mal os seus recursos.
O estudo “Pescas e Pescadores. Futuros para o Emprego e os Recursos” considera que “o sistema sócio-económico das pescas pode ser defenido (pelo menos no caso português) pela inter-relação e inclusão do sector da pesca com os outros sectores, tais como, a construção naval, capturas, aquicultura, I&D, transformação de pescado, comercialização, conservação e distribuição. No entanto, as actividades económicas a montante e a jusante não se encontram normalmente no mesmo sector, nem constituem uma cadeia de valor directa. Mas, no caso das pescas há que considerar agregações de actividades que têm implicações directas entre si, embora sejam sectores muito distintos uns dos outros. E neste sentido poderemos falar de clusters especializados com implicações significativas a nível local ou regional”.
Num país de reduzida dimensão, como é o caso de Portugal, apontam-se seguramente mais de duas dezenas de nucleos urbanos situados na costa oceanica portuguesa, nos Açores e na Madeira, alguns dos quais de média dimensão, com elevada dependência da pesca e das actividades situadas a montante ou a jusante. Embora existam regiões na Europa com níveis de dependência do emprego superiores a Portugal (os autores de Pescas e Pescadores referem: Norte da Escócia, Cornualha, Bretanha e Galiza), mas todas estas regiões fazem parte de estados de dimensão média, e com populações muito mais vastas que o nosso país.
A dependência do nosso país da pesca é, em termos económicos, muito maior, tanto devido ao elevado nível de consumo de peixe per-capita, (que não se encontra rigorosamente contabilizada dados os níveis de auto-consumo das populações ribeirinhas), como pelo peso na balança comercial: numa região como os Açores a pesca contribui com mais de 40% das exportações.
A falta duma correcta política de pescas faz com que um conjunto de factores claramente favoráveis ao desenvolvimento deste sector económico de fundamental importância para o país tenha sido até agora claramente desaproveitado. Como refere Ilona Kovács (Pescas e Pescadores) “apesar de Portugal ser detentor de uma das maiores zonas económicas exclusivas da UE, de ter acumulado conhecimentos científicos e domínio tecnológico sobre o mar e sobre as actividades marítimas, e de ser ainda o terceiro maior consumidor de peixe per-capita do mundo, é o país com menor nível de produtividade e rendibilidade da exploração dos recursos marinhos na União Europeia”.
Um maior aproveitamento dos recursos marítimos permitiria uma maior soberania alimentar, com menor dependência externa, numa lógica de desenvolvinmento estratégico e sustentável de recursos naturais.
5-Causas para o mau estado da pesca e dos ecossistemas maritimos: Liberalização dos Oceanos, busca do lucro fácil e imediato e poluição.
“Cultivar o mar é uma coisa. É oficio de pescadores; explorar o mar é outra coisa - é oficio de industriais”Raul Brandão, in Pescadores.1923
Como é referido na Declaração da Assembleia Geral do Forum Mundial dos Pescadores e Trabalhadores da Pesca “As pescarias mundiais enfrentam uma crise sem precedentes. As populações de peixes e a maioria das espécies marinhas têm-se reduzido a uma fracção muito inferior à dos seus níveis naturais históricos. Os oceanos estão no seu nível mais baixo de produção com entre 73 e 75 por cento das pescarias mais importantes do mundo em estado de sobre-exploração, totalmente destruídas ou em recuperação. Em todo o mundo tanto os ecossistemas marinhos como as comunidades humanas sofrem as consequências da pesca não sustentável”.
“Duas decadas de políticas neo-liberais (...) aprofundaram a ruptura entre países ricos e pobres, agravando as condições de vida das comunidades de pesca artesanal e impedindo o acesso aos recursos pesqueiros, mediante processos de privatização que na maioria dos casos funciona através do sistema de quotas individuais transmissiveis (QIT)”.
A crise da pesca é reconhecida por todos os organismos internacionais com responsabilidade na gestão dos oceanos.
Marcelo Vasconcelos, considera que a crise da pesca assenta em três factores:
·“Um forte desenvolvimento tecnológico materalizado em poderosos equipamentos de navegação, detecção e pesca;
·Uma organização em moldes industriais, e
·Um regime de exploração assente na lógica do mercado e do máximo lucro no curto prazo”
A lógica do lucro máximo no mais curto prazo levou à sobredimensão das frotas industriais de longa distância. Usam-se os navios de pesca com bandeiras de conveniência como forma de fuga à aplicação de leis conservacionistas, e de salvaguarda da vida humana no mar, adoptadas pelos organismos especializados das Nações Unidas e por alguns estados costeiros com uma politica mais responsável. A União Europeia, e algumas potencias marítimas, mantêm subsídios a operações de pesca industrial altamente predadoras e não selectivas como o arrasto, os grandes cercadores e ao uso de artes (redes e armadilhas) “cegas” que mantêm elevados níveis de mortandade mesmo após perdidas no fundo dos oceanos.
A OCDE, num estudo sobre o sector, sublinha que “as pescas constituem um importante contributo para a segurança alimentar e para a actividade económica em geral, incluindo o emprego e o comércio. Em muitos paises do mundo os recursos marinhos estão sobre-explorados. Isso parece dever-se em grande parte à ineficácia das políticas de gestão adoptadas com o fim de manterem as capturas em niveis sustentados. Como resultado as capturas excedem frequentemente a capacidade produtiva e de renovação das espécies conduzindo os stocks a niveis muito baixos em detrimento das comunidades piscatórias”.
Os ecossistemas marítimos são também vitimas da poluição industrial em grande escala produzida em terra assim como da poluição provocada pelo comércio marítimo de produtos tóxicos e radioactivos responsável por autenticas catástrofes ambientais.
6-Portugal deve manter a gestão dos recursos biológicos do mar
“A sustentabilidade da pesca não é uma questão somente técnica; constituí um desafio que implica a mais alta vontade dos estados.”Declaração de Lisboa, Fórum Mundial dos Pescadores
O artigo 11º da proposta de Tratado que estabelece uma Constituição para a Europa determina que “quando a constituição atribua à União competência exclusiva em determinado domínio só ela pode legislar e adoptar actos juridicamente vinculativos. Os próprios Estados-membros só podem fazê-lo se habilitados pela União ou a fim de dar execução aos actos por esta adoptados”.
A proposta prevê áreas de competência partilhadas e, nesse domínio, a União e os Estados membros têm o poder de legislar e de adoptar actos juridicamente vinculativos (art 13º). A proposta define, especificamente, em artigos próprios, a coordenação de politicas económicas e de emprego (artº14º) e a politica externa e de segurança comum (artº15º).
Entenderam os proponentes da Constituição para a Europa dever incluir na limitadissima categoria adstrita ao dominio da competência exclusiva da União “a conservação dos recursos biológicos do mar no âmbito da Política Comum de Pesca”.
Tal proposta, embora aparentando ser conservacionista, acaba por favorecer a pesca industrial e intensiva, contrária a uma pesca sustentável e responsável. Ao ser implementada leva à delapidação dos recursos pesqueiros como tem vindo a acontecer desde há muito nas zonas costeiras do Norte da Europa, nas Ilhas Britanicas, no Golfo da Biscaia, na frente atlântica de Portugal e Espanha e em todo o Mediterraneo.
Como está devidamente fundamentado nesta exposição trata-se duma proposta que “contraria toda a lógica do direito marítimo internacional que assenta na responsabilização directa e imediata das populações ribeirinhas na preservação dos ecossistemas marinhos e no desenvolvimento duma pesca integrada e sustentável”.
Como refere Paulo Casaca, “a proposta tem implicita uma lógica sistematicamente rejeitada pelos Estados e regiões atlânticas tendo levado já à saida da Gronelandia e das Ilhas Farõe da Comunidade e impedindo a adesão da Islandia e da Noruega”. in Jornal “Público” de 05/07/2004.
Não se percebe como aceitaram os representantes portugueses à Convenção a proposta da transferência da competência exclusiva da jurisdição sobre os recursos oceânicos da zona económica exclusiva nacional para a UE quando o Governo português afirma inserir-se no movimento que, no âmbito das Nações Unidas, propõe o alargamento da jurisdição e dos direitos das 200 para as 250 milhas.
Face ao exposto considera-se que a Assembleia da República deve rejeitar a inclusão da “conservação dos recursos biológicos do mar, no âmbito da política comum de pescas” e que tal deve ser incluido no artigo 16º, onde se encontra defenido que a União terá uma acção de apoio, de coordenação ou de complemento, sendo a responsabilidade principal pela conservação dos recursos biológicos do mar da competência de cada um dos estados integrantes da União Europeia.
7-Reassumir o mar como base do desenvolvimento duma nação ribeirinha
“Portugal (...) deve unir-se em torno dum projecto que torne o oceano um motor para Portugal. Trata-se de fazer do oceano a clepsidra que marque o ritmo de uma transformação sócio-económica: da reestruturação da economia e do tecido empresarial, à formação, da investigação científica ao posicionamento no plano das relações internacionais, da defesa do ambiente à inovação”.Nuno Marques Antunes e Manuel Pinto Abreu
Membros da Comissão dos Oceanos
A conferência das Nações Unidas sobre o Direito do Mar que consagrou as 200 milhas como área sob jurisdicção dos Estados Costeiros, resultou dum movimento de sentido claramente anti-colonial que, iniciando-se embora como resultado da pretensão duma potencia (os EUA que pretendiam estender o seu controlo e jurisdição para além dos limites do mar territorial) acabou em beneficio dos países costeiros, nomeadamente dos países dependentes situados no hemisfério sul: América do Sul, África e Ásia, grande parte deles saídos nas últimas decadas da situação colonial.
Portugal, país com passado colonial e com tradição na pesca de longa distância, perdeu com a Convenção da ONU, no direito de acesso a águas onde tradicionalmente pescava mas ganhou em soberania sobre uma extensa zona marítima. Não soube, e seguramente faltou aos dirigentes nacionais, vontade politica para se adaptar à nova situação resultante da alteração do direito marítimo internacional. Há que corrigir esse erro.
A história não se repete. Portugal não pretende ser, nem voltará a ser, uma potência maritimo-colonial. Igualmente hoje não se pode adoptar uma estratégia de desenvolvimento dos recursos marítimos numa perspectiva isolacionista. Nos oceanos não é possível construir muros nem estabelecer fronteiras. O que implica que qualquer politica nacional de pescas parte do reconhecimento da necessidade em estabelecer regras de cooperação entre os Estados que constituem a União Europeia e destes com a Comunidade Internacional. Esta cooperação deve assentar no do rigoroso respeito pelo Direito Marítimo Internacional, que concessionou aos Estados ribeirinhos a soberania sobre os seus recursos naturais vivos e não vivos. Esta é a única forma de garantir a autonomia alimentar às nações ribeirinhas e a protecção dos recursos dos oceanos.
quinta-feira, novembro 11, 2004
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