quinta-feira, outubro 21, 2004

Ao ti António

Levante-se ó ti António
Ai, não se deixe ficar
Que a companha está à espera...

À espera de ir para o mar... azul que se estende à sua frente.
O Ti António levanta-se a muito custo porque cada dia que dobra a esquina, no trajecto diário, é confrontado com um mundo novo que tem pouco de admirável e onde tudo está, na realidade, velho demais. Não há novidades. O velho lobo do mar já nem sabe o que há-de dizer na próxima carta para os familiares do norte, que vai pedir à vizinha para escrever. Os seus olhos já não são o que eram e a caneta não obedece ao traço seguro de outrora.
Não há ideias, não há acção. Tudo cheira a bafio nesta terra.
Não há caras novas. Não há gente nova. Tudo o que se passa de importante é acima do Feijão; no campo. Dizem que nas aldeias rurais a vida está diferente. Há prédios que batem por vários centímetros o famoso "arranha-céus" plantado à entrada da vila.
Para ver os filhos e netos, tem de se meter nos "autocarros da carreira". E agora já nem tem os azuis do Covas.
Na última carta - recorda-se - falou do grande empreendimento que vão construir na "Mata de Sesimbra". Primeiro pensou que este fosse nascer na mata junto ao Desportivo, porque nunca tinha ouvido falar de outra. Já lhe explicaram que é lá longe, onde os pinheiros estão doentes e devem ser abatidos. Disseram-lhe que só com esse prometido empreendimento turístico, o campo podia ter saneamento básico, e o concelho veria melhoradas as suas acessibilidades... e que muita gente rica passaria a visitar Sesimbra. Fez gala desta notícia na missiva que ditou a custo à vizinha. Queria que pensassem que Sesimbra, afinal, estava a caminhar rumo ao progresso. Lá no fundo, no entanto, sentia um aperto no coração. Havia muita coisa que lhe fazia confusão mas não queria perguntar porque, com certeza, lhe passariam um atestado de estupidez. Nas discussões públicas que a Câmara (com cujos responsáveis até tinha andado ao colo) tinha vindo a realizar sobre o assunto, quando os seus camaradas expunham as dúvidas e receios perante uma sala cheia de curiosos e assessores, recebiam em troca sorrisos de compreensão forçados e trocistas e respostas fugidias. Nunca se atreveria...

Mas não percebia porque queriam matar os pinheiros. Recordava-se, mais vezes do que seria desejável, da vez em que levou o "Chalana" ao veterinário. O cachorro andava com ar triste, já não lhe pegava no balde do peixe, quando, certo como um relógio, avisava o dono que era hora de voltar a casa. Costumava encontrá-lo deitado pelos cantos com a respiração pesada e limitava-se a abanar timidamente o rabo quando lhe afagava ao pêlo. Algo andava mal com o bicho. Nunca mais lhe saiu da memória, a sensação de obrigar o "Chalana" a enfrentar o homem da bata branca, e a sair minutos depois com a trela na mão e um peso de morte na consciência. Esforçava-se por pensar que o cão era um bicho apenas e nada mais, mas se fosse hoje, já não entregaria o "Chalana" assim. Ele havia de preferir morrer em casa. Tal como ele próprio. Coisas de velho... Mas era por isso que duvidava que o abate dos pinheiros fosse a única solução possível. Entregar a vida e os pulmões da região ao cimento, não lhe parecia correcto. E, acima de tudo, não queria que a consciência pesasse a ninguém.
Por outro lado, o ti António não percebia para que serviriam as estradas novas. Não que elas não fizessem falta, mas ao chegar a Sesimbra, ninguém conseguiria estacionar! A filha e o genro queixavam-se sempre desse mal e por isso, explicavam-lhe, tinham reduzido as visitas a sua casa. Além disso, sabia que a vila, modesta como só ela, tinha pouco mais para oferecer aos turistas do que a sua beleza ímpar pela qual se sentia eternamente apaixonado. O sol que lhe deixara a pele curtida e o mar que sempre lhe dera alimento, não eram atractivos o suficiente para os turistas. Faltava mais. Muito mais, para que "os de fora e os camónes" voltassem.
E o mega-empreendimento... bom... como ele gostava que o mato continuasse a ser apenas mato... As galinhas dos ovos de ouro nunca o conquistaram. A vida encarregou-se de lhe ensinar que quando a esmola é grande, o pobre desconfia. E ele sim, era desconfiado. Essas grandezas não o demoviam.
Abriu a carteira e olhou a foto do neto. Teve pena que o petiz já não tivesse a felicidade de conhecer a Sesimbra que o avô conheceu. Pensou que à medida que a velhice avançava estava a tornar-se cada vez mais avesso ao desenvolvimento, mas justificava o receio com a descaracterização daquilo que considerava primordial na sua terra. Havia uma pureza que ele conhecera. Apesar da fome... e da dependência dos designíos de S. Pedro. Mas o que houve de bom, infelizmente, a sua geração e as seguintes não souberam preservar.
Martirizava-se por isso. Considerava que poderia haver alternativas.
Restava-lhe acreditar que a sua Sesimbra seria sempre, pelo menos no seu coração,

... Uma rosa
Virada pró Mar

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