Procuradoria Questiona Acordo Sobre Urbanização na Mata de Sesimbra
Por RICARDO GARCIA
Sábado, 23 de Outubro de 2004
A Procuradoria-Geral da República (PGR) considera questionável o acordo assinado pelo ex-ministro das Cidades, do Ordenamento do Território e do Ambiente, Isaltino Morais, que permitiu transferir direitos de urbanização sobre uma falésia no Meco para a Mata de Sesimbra, aumentando o índice de construção previsto nesta zona.
Num parecer com cerca de 150 páginas elaborado a pedido do sucessor de Isaltino, Amílcar Theias, o Conselho Consultivo da PGR levanta dúvidas sobre, pelo menos, um aspecto central do acordo - a própria legalidade desta transferência de direitos.
O acordo fora promovido por Isaltino para pôr fim à alegada ameaça de pesadas indemnizações pela não concretização do empreendimento do Meco, a cargo de uma empresa de capitais alemães - a Aldeia do Meco - Sociedade para o Desenvolvimento Turístico.
O projecto fora aprovado por deferimento tácito na década de 1970 e previa 2227 fogos, numa frente de mar de 1,5 quilómetros, sobre uma falésia no Meco, onde hoje é proibido construir. Depois de três décadas de batalhas judiciais, a empresa obteve finalmente o alvará de loteamento em 1999.
Mas em 2001, o Ministério do Ambiente - na altura liderado pelo actual líder do PS, José Sócrates - conseguiu anular o alvará, depois de comprar uma parcela de terreno no meio da área de intervenção.
Os alemães accionaram um tratado luso-germânico de protecção mútua de investimentos e ameaçaram com um pedido de indemnização. O assunto acabou por ficar resolvido com o acordo promovido por Isaltino, assinado em Março de 2003.
Nos termos do acordo, a empresa alemã desistiria do loteamento no Meco, mas o Estado e a Câmara de Sesimbra transfeririam aqueles direitos de construção para outra área - a Mata de Sesimbra. Os direitos seriam, ainda, vendidos pela Aldeia do Meco a uma terceira empresa, a Pelicano - Investimento Imobiliário, que possui terrenos naquela área. E o Governo comprometia-se a ratificar um plano de pormenor - actualmente em elaboração - que necessariamente aumentaria o índice de construção previsto para a Mata de Sesimbra.
Nobre Guedes: "Há partes que são questionadas"
O parecer da PGR foi enviado ao Ministério do Ambiente e do Ordenamento do Território na passada segunda-feira. O ministro Luís Nobre Guedes ainda o está a avaliar e não quis adiantar detalhes sobre o parecer.
"De facto, o parecer foi emitido e questiona parcialmente o acordo", disse Nobre Guedes. "Há partes que são questionadas".
A PGR terá posto em causa o ponto central do acordo - a transferência de direitos de construção de um local para o outro. O acordo sustentava-se num parecer jurídico de Diogo Freitas do Amaral e Cláudio Monteiro, este último advogado da empresa Pelicano. A PGR já havia expresso, anteriormente, a convicção de que a transferência não era legalmente possível, segundo pareceres de outros juristas, emitidos em obras académicas.
Uma posição negativa da Procuradoria neste aspecto teoricamente minaria por completo o acordo. Mas Nobre Guedes diz que o parecer poderá abrir portas a soluções. O parecer do Conselho Consultivo da PGR passará a representar a interpretação oficial sobre o assunto no momento em que for homologado pelo Governo.
Dúvidas Foram Levantadas Logo no Princípio
Sábado, 23 de Outubro de 2004
Procuradoria começou a avaliar o acordo antes de Amílcar Theias ter pedido parecer
Ricardo Garcia
As dúvidas sobre o acordo de Isaltino referentes ao "caso Meco" começaram a surgir logo que o documento foi assinado. No dia 21 de Março do ano passado, quatro dias depois da assinatura, o Procurador-Geral da República, Souto Moura, enviou uma carta ao Ministério das Cidades pedindo esclarecimentos sobre o acordo, do qual soubera através das notícias na comunicação social. Souto Moura dizia que o acordo poderia ter repercussão em processos judiciais pendentes, um dos quais um recurso contra o alvará de loteamento do Meco, interposto pelo Ministério Público a pedido do anterior ministro do Ambiente, José Sócrates.
Isaltino de Morais deixou o Governo mês e meio depois e, no ministério, o PÚBLICO não encontrou nenhum documento que indique que terá respondido a Souto Moura. A tarefa acabou por sobrar para Amílcar Theias, que sucedeu a Isaltino. Nessa altura, Theias limitou-se a mandar uma cópia do acordo ao Procurador-Geral.
Seis meses depois, a posição do ministro mudou. Ao invés de se limitar a enviar informação, Amílcar Theias pediu, ele próprio, que Souto Moura avaliasse a legalidade do acordo. Em concreto, Theias solicitou que se esclarecesse "se tal acordo tem, ou não, aptidão jurídica para vincular o Estado português a cumprir as obrigações nele assumidas".
O ex-ministro disse anteontem ao PÚBLICO que tinha algumas dúvidas em relação ao acordo - por exemplo, sobre a competência do Governo em prometer compensar a empresa Pelicano com terrenos alternativos, caso o plano de pormenor da Mata de Sesimbra não pudesse ser ratificado. Além disso, outras dúvidas vinham sendo levantadas pela Assembleia da República. "Em mais de uma vez fui interpelado sobre o acordo", justifica Theias. Pedir um parecer à Procuradoria-Geral da República (PGR) era uma forma de clarificar definitivamente a questão.
Pouco antes do pedido de Theias, a própria PGR entrara em contacto com o ministério. Souto Moura sugeriu, em Setembro de 2003, uma reunião para discutir o assunto. No mês seguinte, o ministério recebeu uma carta do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, a pedir documentos que comprovassem que o Estado alemão havia levado Portugal a um tribunal arbitral - por alegada violação de um acordo luso-germânico para questões económico-financeiras. Theias encaminhou o pedido aos serviços jurídicos do ministério, mas a resposta foi a de que tais documentos nunca por lá tinham passado, tendo sempre "corrido internamente entre os gabinetes dos senhores membros do Governo".
A questão do tribunal arbitral era um dos principais argumentos para a assinatura do acordo. Em Junho de 2002, um documento do ministério sintetizava a situação do "caso Meco", dizendo que os investidores alemães reclamavam uma indemnização pelo facto de se ter inviabilizado o loteamento no Meco. Numa nota de rodapé, apresentava-se uma estimativa avultada: 3,2 mil milhões de euros.
O tribunal arbitral integraria três juízes. Dois estavam já indicados, um pelo Estado alemão, outro por Portugal (o advogado Proença de Carvalho). O terceiro juiz seria nomeado conjuntamente, o que aparentemente nunca chegou a acontecer. O processo arbitral foi suspenso, por ambas as partes, na expectativa de conclusão do acordo. Isaltino chegou a receber o embaixador da Alemanha para discutir o assunto.
Quando Amílcar Theias pediu o parecer à PGR, a reacção foi imediata. Dois dias depois de uma notícia do "Expresso" que dava conta do pedido, chegaram ao gabinete do ministro dois faxes a solicitar audiências. Um era da Pelicano e o outro da Aldeia do Meco, a empresa dos alemães.
No mesmo dia, o ex-ministro Isaltino de Morais também enviou uma carta a Theias. Isaltino mostrava-se surpreendido pelo facto de Theias ter dúvidas sobre o acordo e nunca as ter manifestado a si, que interviera directamente no processo. O ex-ministro disse, ainda, que enviaria cópias daquela carta e de outras comunicações sobre o assunto ao primeiro-ministro.
Nos meses seguintes, a PGR deixou claro em que pontos o acordo parecia ter problemas. Em Dezembro passado, uma delegada do Ministério Público no Tribunal Administrativo de Lisboa chamava a atenção do Ministério das Cidades para o facto do acordo se basear numa interpretação errada da possibilidade de transferência dos direitos de construção do Meco para a Mata de Sesimbra. O parecer jurídico em que se baseava o acordo, segundo a magistrada, opunha-se "a diversos estudos de outros eminentes juristas no âmbito do direito do urbanismo".
Mais tarde, em Fevereiro, o Procurador pediu ao ministério que esclarecesse três pontos. Num deles, Souto Moura queria saber se havia ou não um despacho de delegação de poderes para que Isaltino tivesse assinado o acordo em nome do Estado português. Resposta do Ministério das Cidades: "Tanto quanto se sabe, não foi publicado qualquer despacho de delegação de poderes nesse sentido, nem foi encontrado qualquer despacho nos arquivos desse gabinete".
segunda-feira, outubro 25, 2004
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