Empresário com Quem Isaltino Fez o Negócio do Meco Teve Empresa Que Faliu por Dívidas ao Estado
Por JOSÉ ANTÓNIO CEREJO
Domingo, 24 de Outubro de 2004
O presidente da imobiliária Pelicano, com quem o ex-ministro do Ambiente, Isaltino Morais, firmou o acordo sobre a aldeia do Meco posto em causa pela Procuradoria-Geral da República, esteve à frente de uma outra imobiliária, a Acomave, que faliu em 1999 com quase 400 mil contos (perto de dois milhões de euros) de dívidas ao Estado. Joaquim Mendes Duarte possuía metade do capital da Acomave e deixou a sua presidência em 1995. Nessa altura, a sociedade já tinha problemas com o fisco e estava envolvida num complexo litígio judicial em que a Câmara de Oeiras e Isaltino Morais também eram parte.
Em 2002, quando o autarca trocou Oeiras pelo Ministério do Ambiente, o processo da Aldeia do Meco encontrava-se mais uma vez num impasse. O anterior titular da pasta, José Sócrates, tinha recorrido a uma habilidade jurídica para inviavilizar a construção do polémico empreendimento no litoral de Sesimbra. Mas os investidores alemães que estão na sua origem já tinham iniciado mais uma batalha judicial, desta vez contra a solução do actual líder do PS.
Meia dúzia de meses depois da posse de Isaltino, porém, o caso sofreu uma súbita reviravolta com a aceitação da proposta de Mendes Duarte para trocar o direito de construir 2227 fogos na praia do Meco pela possibilidade de construir os mesmos fogos na Mata de Sesimbra - proposta essa que até aí tinha sido recusada pelo executivo de António Guterres.
Um alvará contestado em Carnaxide
Doze anos antes, em 1990, o responsável pela negociação com Isaltino partilhava o capital da Acomave com um sócio e desenvolvia muitas das suas actividades em Oeiras. Em Outubro desse ano adquiriu um terreno de 74 mil metros quadrados, nas traseiras do Hospital de Santa Cruz, em Carnaxide, com um processo de loteamento em vias de aprovação. No mês seguinte, tomando conhecimento de que a Acomave estava a vender a propriedade em lotes, diversos proprietários da zona interpelaram pessoalmente Isaltino Morais para lhe dizer que quase metade dos terrenos (35 mil m2) que estavam a ser vendidos eram seus, e para lhe pedir que suspendesse o loteamento e a emissão do alvará (ver páginas seguintes).
Um dos interessados, a empresa Domingos de Castro, tinha um depósito de materiais de construção vedado no local e, em 1988, tinha solicitado à câmara - sem obter resposta - que a informasse sobre o que podia construir nos dez mil metros quadrados que ali comprara em 1984. A sociedade insistiu com Isaltino e requereu, ainda em 1990, a suspensão do processo "até completo esclarecimento e decisão sobre a legitimidade dos intervenientes".
A câmara, contudo, limitou-se a emitir o alvará de loteamento da propriedade disputada, logo em Fevereiro, conforme requerido pela Acomave e sem dar explicações aos cinco proprietários que diziam ser donos de parte dos terrenos. O alvará, assinado por Isaltino Morais, autorizava a divisão da propriedade em 83 lotes destinados a moradias e a realização das respectivas obras de urbanização.
Iniciadas estas, e numa altura em que Mendes Duarte já tinha vendido grande parte dos lotes, os cinco proprietários apresentaram em tribunal um pedido de embargo dos trabalhos. Estávamos em Abril de 1991 e era o início de uma longa batalha judicial que ainda não terminou e no decurso da qual os queixosos têm frequentemente acusado a câmara de favorecer os interesses da Acomave.
Um mês depois, o tribunal mandou parar as obras, sendo a sentença confirmada pela Relação e comunicada à câmara no final do ano. Apesar disso, a Acomave prosseguiu os trabalhos e a venda dos lotes, a autarquia fechou os olhos, e o Ministério Público instaurou um processo por desobediência contra a empresa. O caso veio a ser amnistiado e arquivado, mas um outro tribunal ordenou, em Dezembro de 1992, a demolição dos passeios e das ruas abertas ilegalmente. Passados cinco anos, o recurso interposto pela Acomave contra esta decisão foi rejeitado e a Relação deu-lhe 30 dias para deitar tudo abaixo.
Já em 1998, em resposta a um novo recurso, o Supremo Tribunal de Justiça confirmou o acórdão anterior, mas a sentença não foi acatada. Requerida a execução da mesma pelos reclamantes, o tribunal acabou por declarar extinta a acção, em 2001, "por inutilidade da lide" - uma vez que a falência da Acomave tinha sido declarada em 1999.
Ao longo destes anos Isaltino Morais teve de responder, em nome da câmara, a diversas acções judiciais interpostas pelos reclamantes. O autarca foi também ouvido como testemunha da Acomave em algumas das muitas acções judiciais relacionadas com o caso, parte das quais continuam a correr nos tribunais. Em 1996, sem que o embargo judicial tivesse sido levantado, proferiu um controverso despacho que autoriza a construção de moradias nos lotes disputados pelas duas partes, graças ao qual a maior parte da urbanização foi depois concluída.
O acordo com Mendes Duarte
Entretanto, ao mesmo tempo que a Acomave alienava praticamente todo o seu património - vendendo os lotes de Carnaxide a terceiros, que ignoravam o embargo das obras e o litígio em curso, e vendendo prédios que possuía em Lisboa a uma outra empresa acabada de criar por Mendes Duarte - as actividades do empresário recebiam um grande impulso em Oeiras.
Ainda em 1992, através da aquisição da sociedade Jofrasa, o grupo de Mendes Duarte fica na posse de uma propriedade com mais de 30 hectares, contígua aos terrenos da Acomave na serra de Carnaxide. Meses depois, a câmara de Oeiras e a Jofrasa, representadas por Isaltino Morais e por Mendes Duarte, juntamente com o ex-jornalista Jaime Antunes, que então era seu sócio, assinam um protocolo que contempla a urbanização de toda a zona e a criação, a pedido do autarca, de uma "China Town" que incluia um templo budista e foi imaginada na perspectiva do afluxo de chineses de Macau.
Passado algum tempo, estes terrenos passaram para uma outra sociedade do mesmo grupo, a Imoplus, e o projecto da "China Town" caiu no esquecimento. No final dos anos 90 a Imoplus foi comprada pelo Grupo Espírito Santo - cujos bancos e sociedades imobiliárias aparecem normalmente associados a Mendes Duarte, nomeadamente na operação da Aldeia do Meco - e foi já sob a sua direcção que as obras do Parque de Santa Cruz, a mega-urbanização dos antigos terrenos da Jofrasa, foram iniciadas há alguns meses atrás.
No início de 2000, meses depois de o Tribunal de Comércio ter decretado a falência da Acomave com quase 400 mil contos de dívidas ao fisco, Mendes Duarte aposta no negócio da Aldeia do Meco através da Pelicano e chega a um pré-acordo com os investidores alemães. Ao longo do ano desmultiplica-se em contactos com o Governo socialista, mas a troca de direitos de construção não obtém luz verde de José Sócrates.
Em Outubro a ideia cai por terra com o anúncio, feito por Sócrates, de que tinha resolvido o problema do Meco com a compra, pelo Instituto de Conservação da Natureza, de uma pequena parcela encravada nos terrenos dos alemães - situação que, segundo o então ministro, inviabilizava a urbanização projectada. Ao longo de 2001, face ao falhanço da operação negociada com a Pelicano e à inviabilização da construção no litoral do Meco, o litígio entre os investidores alemães e o Estado português é entregue a um Tribunal Arbitral, onde continuava à data da queda do Governo socialista, no início do ano seguinte.
No princípio do Verão a esquecida proposta da Pelicano é apresentada pessoalmente ao novo ministro. Seis meses depois, em Janeiro de 2003, o texto do acordo agora questionado pela PGR (ver PÚBLICO de ontem) é rubricado por Isaltino Morais, pelo presidente da Câmara de Sesimbra, pelo representante dos capitais alemães e por Mendes Duarte.
Um Longo Imbróglio Judicial
Por J.A.C.
Domingo, 24 de Outubro de 2004
O litígio desencadeado pela reivindicação dos cinco proprietários que acusam a Acomave de se ter apoderado dos seus terrenos e de os ter vendido a terceiros, está há treze anos nos tribunais, deu origem a numerosos processos e sentenças, mas ainda não acabou.
À data da celebração do acordo sobre a Aldeia do Meco, em Janeiro de 2003, a situação mantinha-se particularmente confusa. Em sede de recurso de uma decisão judicial que não dera razão nem à Acomave - que queria ver reconhecida a sua propriedade sobre a totalidade dos terrenos da urbanização -, nem aos proprietários - que acusavam a empresa de ter implantado metade da urbanização sobre os seus terrenos -, o Tribunal da Relação pronunciara-se, parcialmente, a favor da Acomave, em Julho de 2002.
Embora tenha considerado que os cinco proprietários não demonstraram que uma parte dos terrenos loteados pela Acomave lhes pertence, do mesmo modo que esta empresa também não provou o contrário, a Relação decidiu que ela "é dona" de um prédio com as características invocadas, condenando os outros proprietários "a reconhecerem a propriedade de a Acomave sobre tal prédio".
Os condenados, porém, recorreram para o Supremo. E este, em Maio de 2003, confirmou a decisão recorrida. Só que, lembrou, "o que as partes discutem são os limites dos prédios [de todas elas], não se tendo apurado factos que permitam concluir se a autora [Acomave] ocupou ou não parte das parcelas de terreno dos ora recorrentes [os cinco proprietários] e nela implantou parte da urbanização".
A concluir, os juízes do Supremo afirmam que a decisão da Relação "está perfeitamente concretizada (...) embora não resolva o litígio surgido entre as partes por insuficiência de factos provados". Chamado depois a esclarecer este acórdão pelos cinco proprietários, o Supremo decidiu, em 30 de Outubro do ano passado, indeferir o pedido de esclarecimento, considerando que o texto era "suficientemente claro".
Transitado em julgado no mês seguinte, o acórdão não convenceu os cinco recorrentes. De acordo com alguns deles, os seus advogados estão agora a preparar novas iniciativas judiciais contra a Acomave, a Câmara de Oeiras, o Estado e cada um dos adquirentes dos lotes em disputa. Entretanto, continuam pendentes diversas outras acções relacionados com este litígio no Tribunal Administrativo e Fiscal de Lisboa e no Tribunal de Oeiras.
Pelo caminho ficou uma queixa de sete compradores destes lotes, que acusaram a Acomave, Mendes Duarte e outros responsáveis pela empresa de lhes terem vendido os terrenos sem os informarem de que a sua propriedade era objecto de acções judiciais. O Ministério Público acusou depois os arguidos de burla e fraude fiscal, mas o juiz de instrução, oito anos depois da queixa, considerou a primeira acusação como insuficientemente indiciada. Quanto à fraude fiscal, que só nos sete lotes em causa terá causado ao fisco um prejuízo de 29.800 contos, também não pronunciou os arguidos por considerar que o procedimento criminal estava prescrito
segunda-feira, outubro 25, 2004
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